Quando pisei em solo africano pela primeira vez, em junho de 2021, não precisei de muito tempo para descobrir que me identificava profundamente com o continente. A África nunca esteve em meus planos enquanto planejava minha jornada e, como um alinhamento do destino, fui de encontro com ela sem muitas expectativas.
A história é retratada no meu livro “Uma jornada de desconstruções”, mas vou fazer um breve resumo. Era novembro de 2020 e me encontrava na cidade do Rio de Janeiro para atender a algumas reuniões executivas. Aguardando meu voo de retorno para São Paulo, no aeroporto Santos Dumont, comuniquei ao meu diretor, que aguardava seu voo para Belo Horizonte, a minha saída da companhia. Era pandemia, e eu acreditava, equivocadamente como o futuro demonstraria, que estávamos superando todas as restrições e que o mundo caminhava para sua normalidade.
Minha saída efetiva ocorreu cinco meses depois desse encontro, em abril de 2021, e o Brasil atingira o pico de mortes, atravessando seu pior momento. O mundo encontrava-se fechado. Continentes como as Américas, Europa e, principalmente, Ásia estavam com fortes restrições, e as viagens de lazer completamente banidas. A África, até então completamente fora do meu radar, se mostrou um continente viável caso as burocracias fossem vencidas.
E assim começou a jornada no continente que se tornou meu grande propósito de vida. Ao todo, foram mais de um ano e meio viajando pela África. Atravessei mais de 15 países e percorri, inclusive, mais de 15 mil km de moto, passando por países da África Austral. Fiz também voluntariado no Quênia e na Tanzânia, além de viajar pela Etiópia durante os conflitos entre rebeldes e forças do governo. Inspirado pela história do brasileiro Gabriel Buchmann, retratado no filme “Gabriel e a Montanha”, percorri grande parte da sua trajetória até o sul do Malaui, próximo ao Parque Nacional de Mulanje, onde seu corpo foi encontrado após se perder na montanha. Ironicamente, fui obrigado a deixar o Malaui antes de chegar ao Mulanje, história que se repetiria um ano depois.
A África é um continente enorme. O segundo maior do planeta, para ser mais específico, e possui uma população de 1,3 bilhões de pessoas. O continente também representa o maior crescimento demográfico do século, dobrando sua população até 2100. Países como o Malaui, por exemplo, quase dobrarão sua população de 17 milhões para 34 milhões até 2040. Todos esses superlativos representam muita diversidade e pluralidade. Estima-se que mais de 3000 línguas são faladas pelo continente. O suaíli, principal idioma utilizado em países do leste africano, configura-se como a lingua mais relevante, com mais de 200 milhões de habitantes representando-a. Somente na Tanzânia são mais de 100 tribos, cada qual com sua própria cultura, língua e costumes. A Etiópia, único país de todo o continente que nunca foi colonizado, preserva tradições milenares.
Há que se falar também na pluralidade de fauna e flora. Não há outro lugar no mundo que contenha uma megafauna como na África. Os safáris, eventualmente a atividade mais conhecida entre os turistas, são responsáveis por proporcionar encontros com criaturas como elefantes, leões, leopardos, búfalos, rinocerontes, antílopes, hipopótamos, crocodilos, girafas, dezenas de centenas de espécies de pássaros e muito, muito mais. Não foram poucas as vezes que parei o carro ou a moto para aguardar elefantes cruzando estradas ou para observar animais ao redor.
Na Botsuana, acampei com elefantes passando na frente da minha barraca pela manhã. Majestosos e incrivelmente silenciosos. No norte da Namíbia, acordei de madrugada em minha barraca ao som de hienas. Em Essuatíni, demorei para pegar no sono um dia com ruídos de leões e hipopótamos não muito distantes também da minha barraca. Desconfio que não exista lugar no mundo que proporcione experiências tão singulares como essas.
Estas são somente algumas das razões pelas quais a África me conquistou. Arrisco-me a dizer que é o único local do planeta que ainda permanece autêntico, sem muita influência do ocidente.
Lá, ainda temos a capacidade de tirar o crachá de turista do peito e viajar, se assim desejarmos, conectando-nos com as comunidades locais e interagindo com a população. Esses são predicados que, infelizmente, estão provavelmente com os dias contados (mas isso é tema para outra oportunidade). A globalização, apesar de todos os benefícios ensejados, trouxe uma padronização mundial, aniquilando culturas por onde passa. No Sudeste Asiático, mesmo no interior do Laos, encontrei em comunidades locais marcas como Adidas, Nike, etc.
Minhas andanças pelo continente também me fizeram refletir sobre temas como privilégio, mudanças climáticas e preservação. Trabalhei em uma escola, como cozinheiro, na maior comunidade do continente africano, em Mathare, localizada na capital do Quênia, Nairóbi. Lá, entendi a importância da educação e da oportunidade como ferramentas de combate à desigualdade social e à distribuição de renda. Embora não tenha nascido em berço de ouro, sempre tive acesso à educação, e ela foi fundamental para ter tido oportunidades que transformaram e continuam transformando minha vida.
Também em meu livro, relatei a importância que o conhecimento possui na capacidade de ganharmos consciência frente aos reais desafios do século. Somente podemos nos preocupar e eventualmente agir positivamente quando os desafios são genuinamente conhecidos. A vida nas grandes metrópoles afastou a sociedade da natureza e a desconectou do nosso planeta, que nunca presenciou uma destruição em massa como tem ocorrido desde a Revolução Industrial. Fiz mais de 300 mergulhos entre a Ásia e a África e, em muitos lugares onde estive, a vida marinha era completamente ausente; um oceano completamente vazio. Infelizmente, o mesmo tem ocorrido na fauna terrestre.
Em muitos países da costa oeste africana, os animais que tiveram a capacidade de prosperar por milhões de anos já não existem mais. Os rinocerontes, a citar, estão presentes no planeta há mais de 50 milhões de anos. Não possuem predadores naturais e, ironicamente, estão desaparecendo do continente devido aos caprichos da nossa espécie humana. O crescimento demográfico citado acima também tem causado redução das áreas de conservação e aumentado o conflito entre animais e comunidades locais. A equação é simples: quanto mais gente, mais área precisa ser desmatada para produção de alimentos e, como consequência, menos área preservada é deixada aos animais.
Quando retornei ao Brasil após mais de 900 dias de estrada, percebi que todas as experiências que vivi foram força motriz para grandes reflexões e, portanto, para grandes transformações. Minha chegada endossou que o Gabriel antes da jornada ficou na memória e que minha vida jamais poderia ser a mesma de antes. Abri mão de benesses que foram por muitos anos parte da minha vida, como carros e motos, roupas de grife e, eventualmente, o excesso de materialismo. Após tudo que presenciei, não era mais possível retornar para a mesma caixa a que pertenci. Explorei as beiradas do meu conforto e, ao expandi-la, além de descobrir novas perspectivas de vida, tive o entendimento de que a vida é efêmera demais para não nos permitirmos. Retornar ao corporativo na perseguição exclusiva de capital se tornou impensável e abri mão de propostas, digamos, fáceis de ser seduzidas. Mas eu precisava colher os dividendos de todo investimento que havia feito e, mais do que isso, apoiar, colaborar e eventualmente transformar a vida de outras pessoas através, também, de experiências genuínas.
Em fevereiro de 2024, fundei a Hakuna Matata Experience, uma empresa focada em expedições no continente que havia me conquistado e sido responsável por todas as transformações que vivi. Temos como princípio o turismo sustentável em um continente que, embora tenhamos laços históricos, não é destino de brasileiros.
Dos quase 12 milhões de brasileiros que viajam todos os anos ao exterior, apenas 1% possui a África como opção de lazer. Somente Américas e Europa representam mais de 88% dos destinos dos brasileiros. Quando estudei essas estatísticas, fiquei, além de espantado, muito triste em saber que um continente tão plural, autêntico e repleto de experiências não era considerado durante as férias dos brasileiros. Isso acontece porque a todo tempo somos influenciados pelas mídias sociais, por agências de turismo, pelas novelas e pelos filmes. Criou-se uma imagem completamente equivocada sobre a África, que explora somente doenças, generalização da pobreza e conflitos. Uma realidade que, de fato, existiu, mas que há décadas já não faz mais parte da realidade diária dos africanos. Os estigmas e paradigmas permeiam as mentes dos brasileiros até os dias atuais.
Em um mundo tão digital, tornou-se quase impossível identificar se nossas vontades e sonhos são realmente genuínos. Vejo com frequência amigos pessoais levando crianças para pousar em fotos na Torre Eiffel enquanto poderiam estar desfrutando da natureza em safáris por diversos países africanos. Certamente, as crianças aproveitariam muito mais, além de trazer consciência ambiental para uma geração responsável por lidar e eventualmente combater os desafios deixados pela nossa geração.
A Hakuna Matata Experience está inserida nesse contexto. Queremos ter a habilidade e, principalmente, a capacidade de transmitir nossas experiências aos clientes. Nossos roteiros foram cuidadosamente desenvolvidos através de experiência de campo que une características como experiência animal e cultural, paisagens cênicas, atividades na natureza e, principalmente, reflexões que trarão, certamente, novas perspectivas de vida. E não para por aí. Não há como falar de empreendedorismo em pleno século XXI sem considerar questões como impacto e contribuição social. Além de apoiarmos pequenos negócios locais, aumentando a renda das famílias, colaboramos com projetos sociais com foco na educação. O futuro se constrói no presente.
Gabriel Turano
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