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Inshallah Paquistão

  • Foto do escritor: Gabriel Turano
    Gabriel Turano
  • 17 de abr.
  • 6 min de leitura

Uma viagem a Dubai me deu a oportunidade de conhecer um país que, assim como muitos outros, nunca esteve na minha lista. Não por julgamentos ou preconceitos, mas simplesmente por estar fora do meu radar.

Antes de falar sobre o Paquistão, convém algumas linhas sobre minha experiência em Dubai. O país contrasta com tudo aquilo que busco em minhas viagens, especialmente por sua ausência de autenticidade. Com avenidas largas que lembram os Estados Unidos, carros de luxo de diversas marcas desfilam por uma paisagem marcada por imponentes construções e uma infinidade de arranha-céus — muito concreto e pouca identidade.


Estima-se que menos de 10% da população seja de emiradenses, o que evidencia que sua força de trabalho é majoritariamente estrangeira. Imigrantes vindos, sobretudo, da África e da Ásia, aceitam — muitas vezes em condições precárias — empregos que se assemelham a formas modernas de escravidão.


Em um dos hotéis em que estive hospedado, presenciei uma cena que me marcou: um funcionário contratado exclusivamente para abrir e fechar a porta para os clientes que entravam no local. Aqui existem dois absurdos:(i) esse trabalho só existe porque os salários são exploratórios — nenhum empresário contrataria alguém para essa função se o custo fosse elevado, e(ii) o fato de clientes naturalizarem essa situação, como se fosse algo normal.


Dubai é um grande resumo de como o capitalismo excludente pode transformar lugares em espaços sem alma, sem DNA. Caminhar por suas ruas é como caminhar por qualquer grande centro de uma cidade cosmopolita, diferenciando-se, eventualmente, apenas pelos trajes das pessoas locais.


De volta ao Paquistão...


Paquistão é o país mais populoso do mundo (240 milhões de habitantes), e mais de 96% da população é muçulmana. Isso não o torna um país sem diversidade, muito pelo contrário. O urdu é a língua nacional, mas, paradoxalmente, somente 7% da população a fala. São mais de 70 idiomas pelos quatro cantos do país. Sua capital, Islamabad, está longe de retratar o país. Análoga a Brasília, sua construção também foi planejada com o intuito de substituir Karachi. Com avenidas largas, áreas verdes e divisão setorial (residencial, comercial, educacional etc.), Islamabad é limpa e organizada, um contraste com a realidade do Paquistão.


Ela está localizada em um vale, cercada pelas colinas Margalla, parte da extremidade ocidental das famosas cordilheiras do Himalaia. Portanto, embora quase desconhecida, possui grande potencial para os apreciadores de hiking.


Nas ruas das cidades que atravessei, observo uma vida muito diferente da minha. Entre tuk-tuks, carros, vans e caminhões, crianças caminham segurando sacolas com batatas e galinhas entre os braços.


 shalwar kameez
 shalwar kameez

Os homens mais idosos e tradicionais vestem shalwar kameez, composto por uma calça larga e folgada, ajustada nos tornozelos. Os mais novos, já com alguma influência do Ocidente, utilizam jeans, bonés e camisetas de marcas famosas. As mulheres das cidades menores estão ocultas na sociedade e, quando as vejo, estão sempre trajando a burqa nas regiões mais conservadoras, como o Vale do Swat, ou hijabs nas áreas menos conservadoras. Elas nunca estão sozinhas. Ou estão acompanhadas da família, mesmo que seja um filho de 4 anos de idade, ou de outras mulheres.


As ruas são sempre barulhentas, caóticas e sujas. De certa forma, caminhar por elas é como voltar séculos no tempo. O comércio é feito entre a população, e não existem redes de supermercados, lojas de conveniência e tantos outros confortos que se tornaram elementares em nossas vidas. Galinhas estão expostas em gaiolas, e o abate é feito no momento da compra.


Ainda guardo na memória uma cena marcante: dentro da van, observava pela janela diversos comércios enquanto seguia rumo ao norte. Em um desses comércios, um vendedor abre a gaiola para coletar seu produto.


pedaços de um boi expostos.
pedaços de um boi expostos.

A primeira galinha se mantém rígida, negando seu futuro. Ele então tenta uma segunda, que cacareja e caminha para o fundo da gaiola. Já a terceira não tem sorte. Em menos de 10 segundos, ele a puxa para fora, passa a faca em seu pescoço e a joga dentro de um tonel azul, onde sangra até morrer.

Em um último instante, enquanto a van segue em meio ao trânsito, nos olhamos de relance. Para ele, uma cena cotidiana; para mim, uma reflexão de como a vida está sempre a um lapso do fim. Espero mesmo que a morte me encontre vivo — e não enjaulado..


Em um local onde o turismo é incipiente e extremamente modesto, busco chamar a menor atenção possível e passar despercebido por onde caminho. Quando reconhecido, recebo olhares curiosos e, no primeiro sorriso de correspondência, sou bombardeado por gentilezas, apertos de mão, palavras carinhosas e uma recepção tão calorosa que me sinto quase como em casa.

Foram incontáveis as vezes em que fui convidado para um chá ou tive caronas oferecidas enquanto caminhava às margens da rodovia. Se preciso resumir o Paquistão em um único substantivo, este seria hospitalidade.

hospitalidade
hospitalidade

A comida é ampla e variada. Lahore, capital da província de Punjab, é considerada a referência gastronômica do país, mas também a capital cultural. Sua história remonta a séculos passados e já foi governada por diversos impérios, incluindo os Ghaznavidas, os Mogóis, os Sikh e os Britânicos.

Há, inclusive, um ditado local: "Jis ne Lahore nahi dekh, woh janma hi nahi", que significa "Quem não viu Lahore, ainda não nasceu". Mas não se engane – a cidade, que tem a segunda maior população do país, é um caos constante e pode assustar viajantes que não estão acostumados com o ritmo de cidades como as da Índia e de Bangladesh.

Ruas de Lahore
Ruas de Lahore

A higiene é precária, e encontrar restaurantes limpos é um desafio hercúleo. Eu, por exemplo, sou um fervoroso amante de street food, mas não me senti muito confortável em arriscar pelas ruas do Paquistão — reflexo de um trauma sofrido enquanto viajava pela Etiópia.


Por aqui, nem mesmo as forças de segurança estão acostumadas a ver estrangeiros. Não foram poucas as vezes em que fui questionado sobre onde estive durante o dia e com quem. Isso quando não tentavam me escoltar por meio da polícia local. Chegou até a acontecer — da minha acomodação em Midori até o terminal rodoviário. É uma preocupação genuína em um país que sofreu tanto preconceito da mídia (como tantos outros, especialmente no hemisfério sul) e que evita, a todo custo, passar pelos mesmos deletérios.


O Paquistão, assim como outros poucos lugares no mundo, congelou no tempo, e aqui ainda é possível viajar como os mochileiros de décadas atrás, quando não existiam internet, GPS, turismo de massa etc.

Sinto-me privilegiado por ainda ter a oportunidade de viajar como antigamente e, eventualmente, abrir caminhos quase desconhecidos em um mundo já tão explorado.


Por outro lado, vejo o quanto o turismo traria desenvolvimento, especialmente para as comunidades locais.

Não tenho dúvidas de que isso acontecerá, mas me preocupa que siga o caminho de outros países da Ásia, especialmente do Sudeste, onde o desenvolvimento muitas vezes contraria princípios de sustentabilidade.

Mesmo em áreas ainda remotas e com baixa concentração populacional, lamentavelmente, o plástico se tornou onipresente. A população, com baixa educação formal, não reconhece os problemas relacionados ao excesso de lixo produzido e dispersado no ambiente. Para atrair turistas que buscam conforto e segurança, o país terá que investir em infraestrutura. A rede hoteleira ainda é rústica e também demanda investimentos.


Ainda assim, o país impressiona pela beleza natural. Existem muitos refúgios em lugares como o Vale do Swat, onde Malala nasceu e se tornou uma grande ativista dos direitos das mulheres. Lá, as montanhas seguem até a fronteira com o Afeganistão, entre vales, rios, lagos e colinas. Mais ao norte, há lugares incríveis, embora inacessíveis nesta época em que viajo devido às condições climáticas, como Kumrat Valley e Hunza Valley.

O Paquistão, afinal, abriga o K2, a segunda maior montanha do planeta.

Kallam
Kallam

Em uma época que viajar se tornou visitar cartões postais, ostentar compras e paisagens conhecidas, o Paquistão reserva surpresas agradáveis aos que realmente desfrutam viajar a moda antiga. Seguindo a critica ao turismo contemporâneo, vuitos “viajantes” viajam atrás da tela do celular, e ao fazerem isso, perdem oportunidades como reflexão, desconstrução e transformação. Sem falar nos check-in e contagem de países como se isso tivesse alguma relevância. Não a toa admiro tanto exploradores em uma época que a internet não fazia parte do vocabulário. Nessa época se viajava para dentro em jornadas guiadas pela curiosidade e conhecimento. Tempo passados, tempos passados….


Meu tempo no Paquistão foi curto, em contraste com a época em que viajava sem me prender ao calendário. Foi uma viagem cheia de desconfortos, do jeito que precisa ser. O desconforto tem a incrível capacidade de nos fazer apreciar pequenos prazeres, como uma bebida quente em um dia frio.

Adapto-me a essa nova fase carregando todos os aprendizados da jornada passada. Busco olhar por outras perspectivas, me conectar com os locais e me desconstruir. Afinal, a vida, penso eu, precisa ser uma eterna desconstrução — ou continuaremos repetindo os erros do passado.



 
 
 

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©2021 por Gabriel Turano

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